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Projeto: BENEFÍCIOS FISCAIS E DESENVOLVIMENTO NO DISTRITO FEDERAL: ENTRE EXTRAFISCALIDADE E CAPACIDADE CONTRIBUTIVA

Coordenador(a): MAURICIO DALRI TIMM DO VALLE
Vigência: 01/01/2023 a 31/12/2024
Situação: Ativo
Programa/Curso: Direito - Stricto Sensu
Escola: {nme_escola}
Agência: Fundação de Apoio a Pesquisa do Distrito Federal
Edital: FAPDF 09/2022 - Demanda Espontânea
Chamada Chamada Única
Resumo:
1. Tributação e Abuso

A princípio, pura manifestação de poder do senhor em relação aos súditos, que poupava somente os nobres e o clero, a tributação teve seu encontro oficial com a legalidade já entrado o século XIII, mais exatamente, em 15 de junho de 1215, em Runnymede, na Inglaterra, às margens do Tâmisa, quando da promulgação, pelo rei João Sem Terra, embora a contragosto, da “Magna Charta Libertatum”. Em verdade, a origem da Legalidade Tributária é anterior a isso, como esclarece VICTOR UCKMAR, o respeitado ex-professor das Universidades de Gênova e de Milão, em sua obra clássica sobre os “Princípios Comuns de Direito Constitucional Tributário” . Contudo, justifica-se plenamente o destaque outorgado pela doutrina à Magna Carta pelas suas notáveis características de generalidade e abstração, que revelam sua natureza legal; enquanto os documentos medievais típicos, marcados pela especificidade e concretitude, não foram além de uma natureza meramente contratual.

Depois que as leis se incorporaram em definitivo à história da tributação, trazendo-lhe a brisa fresca e saudável da representatividade popular e transformando-a em autotributação, não mais se cogitou de uma imposição tributária razoavelmente civilizada que delas se apartasse. De outro modo, abrir-se-iam as portas aos tributos motivados somente pelos interesses e veleidades pessoais do governante, acolhendo-se então os ventos tempestuosos e maléficos do arbítrio. Não por outra razão, explica VOLTAIRE – François Marie Arouet – o grande literato francês e divulgador de idéias filosóficas do século XVIII: “Se llama tirano al soberano que no conoce más leyes que su capricho...” .

E essa tirania, precisamente pelo abandono intencional das inclinações populares em prol das do tirano, conduz diretamente ao mais alto grau de decomposição e de apodrecimento moral. De acordo, FERNANDO SAVATER, o filósofo contemporâneo da Universidade Complutense de Madri: “...autoritarismo, si es una autoridad por encima de la voluntad de los ciudadanos, ésa es la peor corrupción que existe” . Instala-se, então, a exorbitância do despotismo, muito bem ilustrado pela fórmula petulante de BENITO MUSSOLINI, o “Duce”, político italiano do Fascismo do século XX, aliado fiel do nazismo hitlerista: “Tudo pelo Estado; nada fora do Estado; nada contra o Estado” . Foram excessos de autoridade desse padrão, conquanto historicamente anteriores, que levaram FRIEDRICH NIETZSCHE, o genial filósofo e literato alemão do século XIX, a descrever “...a total inescrupulosidade e demonismo do tirano, que tudo sacrifica à sua arrogância e ao seu prazer” (corrigimos) .

E não se trata de afastamento tão somente da Legalidade, mas, desde que fundado em razões nitidamente antidemocráticas, e evidentemente violadoras da lealdade e da boa-fé, corresponde também a irrecusável divórcio da Moralidade, caracterizando um estado despido de qualquer vínculo com a honestidade e isento de qualquer compromisso com a honra, seja ontem, hoje ou amanhã.

2. Tributação e Revolta

As demasias tributárias praticadas pelos governantes-opressores contra as colônias-oprimidas, sempre motivaram discussões, disputas, movimentos de revolta e mesmo o recurso às armas, ao longo da história.

Foi assim, no caso da Revolução Americana. Menciona, H. G. WELLS, “A história do desenvolvimento das irritações entre as colônias e a Grã-Bretanha...”, classificando as queixas coloniais em três grandes capítulos, dos quais o terceiro era composto pelas “...tentativas de tributação pelo Parlamento britânico no seu papel de suprema autoridade fiscal do império” ; especialmente por “...haber asumido el Parlamento britanico, el derecho ilimitado de legislar para las colonias... y principalmente el de imponerles contribuciones sin su consentimiento... y la pretensión que tuvieron el rey y el Parlamento de compelerlas por la fuerza de las armas... causas inmediatas de la revolución...” (JAMES KENT ).

Igualmente, os tributos constituíram uma das grandes causas da Revolução Francesa, explica HIPPOLYTE TAINE, invocado por WILL e ARIEL DURANT, abrangendo: a talha e o vigésimo, tributos incidentes sobre as propriedades; o imposto de capitação, encargo dos chefes de família; o imposto pago ao governo pelas cidades, cujo ônus era repassado aos cidadãos; impostos indiretos sobre transportes, sobre importação e exportação, e sobre o consumo; e os monopólios governamentais sobre fumo e sal; chegando-se, à época, a resultados surpreendentes: “Ao todo, o participante médio do Terceiro Estado pagava de 42 a 53 por cento de sua renda em impostos” .

Aqui em nossas plagas, a história dos tributos teve seu começo logo nos primeiros anos após a chegada de CABRAL. Aliás, no ano seguinte, uma expedição exploradora fez o reconhecimento das riquezas disponíveis, identificando a presença de certa madeira da qual se extraia matéria corante vermelha, empregada na tinturaria de tecidos: “...o pau-brasil, conhecido dos índios por ‘ibitá pitanga’”; de alto custo, desde que procedente de regiões distantes da Europa; verificando-se, ainda, que a nossa matéria era superior em variedade e em qualidade àquela conhecida na Europa. Declarada “bem de monopólio real”, passou a ser vendida para outros países, especialmente para a Inglaterra. Sua exploração dava-se mediante concessão da Coroa Portuguesa, a quem o concessionário devia pagar o “quinto do pau-brasil”, vinte por cento ou a quinta parte do produto da venda, em espécie, em madeira – o primeiro tributo exigido no Brasil – existente em Portugal desde 1316 e copiado dos muçulmanos .

E tal como em outros lugares, também entre nós o peso dos tributos justificou rebeliões. Fiquemos com o exemplo eloquente da Conjuração Mineira. Desde o Alvará de 1557, vigorava em Minas Gerais o regime dos Quintos: uma quinta parte de todo metal extraído das minas era destinado ao rei. Pela Carta Régia de 3 de dezembro de 1750, foi fixada a arrecadação mínima de cem arrobas de ouro anuais, equivalente a 1500 kg. Quando não atingido esse piso mínimo, fazia-se periodicamente a cobrança dos moradores da parcela faltante, não raro com violência e humilhação – é o que se denominava “Derrama” (AUGUSTO DE LIMA JUNIOR ). Ora, em 1789, o atraso para com a Fazenda Real era de 596 arrobas ou 8.940 kg de ouro; e os boatos da “...sangria feroz...” da derrama deflagraram a conjuração . E nossa história conheceu brasileiros como Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, Inácio José de Alvarenga Peixoto, Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e tantos outros !

3. Capacidade Contributiva e Igualdade


Antes, porém, de demonstrar, como o faremos, os abusos que podem ser praticados no âmbito da tributação extrafiscal, bem como as revoltas que eles podem deflagrar, cumpre que sublinhemos a elevada dignidade da Capacidade Contributiva e da Igualdade em nosso Sistema Constitucional Tributário e os altos riscos que, para elas, representa a Extrafiscalidade. É o que faremos, neste e no próximo item.

Como o fundamento da Capacidade Contributiva se encontra no Princípio da Igualdade, estabeleçamos aí nosso ponto de partida jurídico. E registre-se, de começo, na linha de HUMBERTO ÁVILA, que a Igualdade é apresentada, no Preâmbulo da Constituição brasileira, como um dos “...valores supremos de uma sociedade fraterna...”; já nos começos constitucionais, na abertura do Título II, como o termo inaugural e inicial do vasto rol dos “...Direitos e Garantias Fundamentais” (artigo 5º, caput); logo no primeiro momento do capítulo tributário do Título VI, por intermédio da Capacidade Contributiva, como um dos “...Princípios Gerais” desse sistema (artigo 145, § 1º); e pouco depois, no mesmo capítulo, como uma das “...garantias asseguradas ao contribuinte...” (artigo 150, caput e inciso II) . Ora, tais formas de referir o princípio, como “valor supremo”, como “direito e garantia fundamental”, como “princípio geral” e como “garantia tributária”, justificam, sem dúvida, a questão proposta por ÁVILA: “...enquanto princípio constitucional, a igualdade ‘vale mais’ que os outros princípios ?”

E a resposta do jurista gaúcho, que não tarda – “...ao ser colocada em primeiro lugar nas garantias fundamentais, a Constituição atribuiu uma superioridade abstrata à igualdade...” – é idêntica à que chegara antigo e grande constitucionalista pátrio, FRANCISCO CAMPOS, na metade do século passado, observando que essa precedência cronológica do princípio, no texto, “Não foi por acaso ou arbitràriamente...” (sic), mas “...quis significar expressivamente... que o princípio da igualdade rege todos os direitos em seguida a êle enumerados” (sic) . Eis que, nas palavras de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, intérprete privilegiado desse constitucionalista, “...ele penetra, como uma linfa, os demais direitos e garantias constitucionais, perpassando-lhes o conteúdo normativo...” ; “...condiciona a eficácia... de todos os demais princípios constitucionais”, que, “...servientes...”, colocam-se “...a serviço da isonomia...” .

Sabemos todos, e há muito, que é aristotélica a noção de Igualdade Relativa, a demandar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, na proporção das respectivas desigualdades. Mas sabemos também, hoje, da indisfarçável insuficiência dessa concepção, carente de “...precisões maiores...” (CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO ) e destituída de “...critérios operacionais seguros..” (HUMBERTO ÁVILA ). E sabemos mais: que é a CELSO ANTÔNIO – e àquele que já chamamos de seu “...pequeno grande livro” – que devemos o esforço primeiro, entre nós, de aprofundamento da investigação, nesse campo, identificando as condições de concretização do princípio, mediante o exame: do fator de discriminação; da correlação lógica entre esse fator e o tratamento jurídico estabelecido; – ÁVILA prefere aludir, aqui, adequadamente, à compatibilidade com a finalidade – e da consonância entre essa correlação e os valores constitucionais .

Já o Princípio da Capacidade Contributiva, hoje, expressamente enunciado no diploma constitucional vigente (artigo 145, § 1°), poderia continuar implícito, entre nós, tal como o estava no sistema constitucional imediatamente anterior, assim como em outras plagas – como o ratifica a doutrina lusitana (JOSÉ CASALTA NABAIS ) e a doutrina alemã (CÉSAR GARCÍA NOVOA ), além, também, da jurisprudência germânica (ANDREI PITTEN VELLOSO ) – sem prejuízo da sua efetividade, uma vez que inegável corolário do Princípio da Igualdade em matéria tributária. Não existem aqui disceptações na doutrina nacional e internacional: ele sempre esteve “...implícito nas dobras do primado da igualdade” (PAULO DE BARROS CARVALHO ); ainda hoje, “...hospeda-se nas dobras do princípio da igualdade” (ROQUE ANTONIO CARRAZZA ); constitui “...uma expressão específica do princípio da igualdade...” (CASALTA NABAIS ); “...uma derivação do princípio maior da igualdade” (REGINA H. COSTA ); “...decorre do princípio da igualdade...” (FERNANDO AURELIO ZILVETI ); “...representa um desdobramento do princípio da igualdade” (JOSÉ MAURÍCIO CONTI ); “...a concretização, no campo impositivo, do princípio da igualdade” (ROQUE CARRAZZA ). Mesmo a forte corrente doutrinária que defende a existência de outros princípios, como o da Equivalência e o do Benefício (ANDREI P. VELLOSO ), a concorrer com o da Capacidade Contributiva, na realização da Igualdade Tributária, reconhece-lhe não só a condição de um subprincípio deste (REGINA H. COSTA ), mas sobretudo a condição de “...subprincípio principal que especifica, em uma ampla gama de situações, o princípio da igualdade tributária...” (grifamos) (MARCIANO SEABRA DE GODOI ). Trata-se, pois, a Capacidade Contributiva, do “...critério de comparação que inspira, em substância, o princípio da igualdade” (MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI ); “...o critério fundamental de diferenciação no âmbito tributário”, condição que lhe é “...amplamente reconhecida e enfatizada...” (ANDREI P. VELLOSO ); “...o mais elevado critério comparativo... de isonomia de encargos tributários...” (KLAUS TIPKE e JOACHIM LANG ); “...critério definido pela Constituição como o mais apropriado a constituir a ‘medida geral’...” (MARCIANO GODOI ); “...o principal e mais adequado ‘critério de comparação’...” (DOUGLAS YAMASHITA ); consistindo esse o seu “...aspecto... que tem maior significado e alcance...” (CASALTA NABAIS ).

No que tange ao seu conteúdo, há que, preliminarmente, rejeitar certa doutrina, que já o tentou caracterizar como “uma caixa vazia” ou “um conceito vazio”, como lembram GIAN ANTONIO MICHELI e FERNANDO SÁINZ DE BUJANDA . A despeito de reconhecida, internacionalmente, a “...sua ‘inerente indeterminabilidade’...” (CASALTA NABAIS ), há que sublinhar, com TIPKE, de um lado, que o seu conteúdo “...é ‘indeterminado, mas não indeterminável’” ; e com DIEGO MARÍN-BARNUEVO FABO, de outro, que “...la dificultad para delimitar el alcance del principio...” não implica “...la negación de su eficacia jurídica...” . Há excessos dos dois lados da polêmica conceptual que envolve esse princípio. De uma parte, o exagero clássico de LUIGI EINAUDI, antigo professor das Universidades de Turim e Milão, “...para quien la capacidad contributiva no es más que... un par de palabras que se escapan de entre los dedos y que escurren incomprensiblemente...” . De outra, alguma demasia recente daqueles que asseveram “...ter alcançado na atualidade sólido conteúdo...” (ALEXANDRE BARROS CASTRO ). Mas, nenhum descomedimento na observação já cinquentenária de EMILIO GIARDINA, o jurista italiano: “...não é difícil mostrar qualquer hipótese de imposição em evidente contraste com o princípio...”

É desnecessário acompanhar toda a evolução histórico-conceptual desse princípio para chegar a uma noção razoável, senão pouco mais de uma década, de 1961, com GIARDINA – “...possibilidade econômica de pagar o tributo...” – até 1973, com FRANCESCO MOSCHETTI, o professor da Universidade de Pádua – “...aquela força econômica... idônea para concorrer com os gastos públicos...” . Não se trata, pois, da simples disposição de riqueza, que indicaria mera capacidade econômica, mas do dispor de uma riqueza suficiente para a submissão ao tributo, excedente, pois, da riqueza bastante para apenas atender ao mínimo necessário para uma vida digna, satisfazendo, assim, mais do que tão só as necessidades vitais básicas do cidadão (Constituição, artigo 7º, IV), condição essa que, então sim, apontaria para uma genuína capacidade de contribuir para a sobrevivência do estado, constituindo uma capacidade econômica qualificada por um dever de solidariedade social ; ideia diversa, ainda, da de capacidade financeira, esta voltada para a noção de liquidez. Da primeira distinção, as críticas doutrinárias ao nosso legislador constitucional, que optou pela locução “capacidade econômica” (artigo 145, § 1º), sem, contudo, merecê-las, uma vez que pensamos assistir razão a JOSÉ MAURÍCIO CONTI, no sentido de que a expressão inteira – “...capacidade econômica do contribuinte...” – afasta as equivocidades, desde que indica, nitidamente, aquele cuja riqueza disponível é qualificada, tornando-o apto à sujeição passiva de uma obrigação tributária, na condição de “contribuinte”. Eis que não se trata, assim, de singela capacidade econômica, mas de autêntica capacidade “contributiva” .

É clássica a distinção entre a Capacidade Contributiva absoluta ou objetiva e a relativa ou subjetiva . No primeiro caso, cabe ao legislador selecionar, para a hipótese de incidência das normas tributárias, fatos que sejam reveladores de capacidade contributiva – ou, na célebre expressão de ALFREDO AUGUSTO BECKER, “fatos-signo presuntivos de capacidade contributiva”, ou, em outras palavras, fatos que constituam sinais que permitam estabelecer a presunção da existência dessa capacidade ; – aspecto que desempenha a função de pressuposto ou fundamento jurídico do imposto. No segundo caso, cabe estabelecer a contribuição à medida das possibilidades econômicas de determinado sujeito passivo, adequando o “quantum” do tributo ao porte econômico do fato ocorrido (capacidade contributiva relativa) e adequando-o às circunstâncias pessoais do cidadão (capacidade contributiva subjetiva) ; aspecto que cumpre a função de critério de graduação do tributo e de fixação dos seus limites. A primeira espécie de capacidade contributiva, atinente à hipótese das normas de incidência tributárias, especificamente à sua materialidade; a segunda, adstrita à consequência ou ao mandamento dessas normas . Diversamente daquelas correntes doutrinárias que optam por apenas uma das formas de capacidade contributiva, identificando uma unilateral consagração constitucional, parece-nos mais próprio e acertado admitir-lhe “...una doble función”, como sustenta ALVARO RODRÍGUEZ BEREIJO, catedrático da Universidade Autônoma de Madri ; ou aludir às funções de fundamento e de graduação do tributo como dois momentos sequenciais da capacidade contributiva, como prefere GIARDINA . Procedente, nessa linha, os fundamentos constitucionais da capacidade contributiva identificados por REGINA HELENA COSTA: o artigo 145, § 1º, para a capacidade contributiva relativa; e os artigos relativos à distribuição das competências dos impostos – 153, 155 e 156 – para a capacidade contributiva absoluta .
Tão elevada é a relevância da Capacidade Contributiva para um sistema tributário, que, mesmo reconhecendo certo grau de veracidade na assertiva de NICHOLAS KALDOR, o antigo economista da Universidade de Cambridge, de que a demanda da sua melhor medida “...é como a caça de um meteoro” ; é imprescindível registrar, com TIPKE e LANG, que, não obstante o grau de dificuldade, inexiste qualquer alternativa a esse princípio, a não ser a da “...indigência de princípios fundamentais” ; donde a sensatez e a atualidade da sua condição de “...energia que dá vida e sentido ao Direito Tributário” (JOSÉ MARCOS DOMINGUES DE OLIVEIRA ), do seu caráter de “...trascendencia dogmática” e da sua identidade como “...a espinha dorsal da justiça tributária” (MISABEL DERZI ), como “...la verdadera estrella polar del tributarista” (MATÍAS CORTÉS DOMÍNGUEZ ).

4. Extrafiscalidade

Penoso e precário, porém, é o convívio da Capacidade Contributiva com a Extrafiscalidade. “A complexidade do assunto...”, como observa KARINA PAWLOWSKY, jurista paranaense, “...torna a questão, em verdade, de difícil solução” . E confirma-o a doutrina estrangeira, aqui representada por GUSTAVO J. NAVEIRA DE CASANOVA, o professor da Universidade de Buenos Aires: “Sin lugar a dudas estamos ante uno de los tópicos que más problemas presenta dentro del Derecho financiero en general, y del Derecho tributario en particular” . Isso porque, entre elas, instala-se, na expressão de ANDREI PITTEN VELLOSO, o jurisperito gaúcho, uma “...significativa tensão” .

Não obstante bons autores situem, historicamente, as primeiras experiências extrafiscais em meados do século XVIII ; ALIOMAR BALEEIRO lembra os “...direitos alfandegários altamente onerosos para proteção da produção nacional...”, registrando sua adoção pela França, “...desde o século XVII...”, e por Veneza, “...desde o fim da Idade Média... pelo menos...”, o que implica o recuo inicial até o século XV . Já no século XIX, especificamente em 1848, o mesmo BALEEIRO e SOUTO MAIOR BORGES, apontam o “Manifesto Comunista”, em que, segundo o último, KARL MARX e FRIEDRICH ENGELS incitam “...a massa a pleitear esse instrumento de oportunismo na ação política...” .

É mais recente, porém, a etapa que é considerada a fase contemporânea da utilização extrafiscal dos tributos, marcada por um caso jurisprudencial clássico, que aliás deflagrou o início dessa etapa: trata-se de um caso do começo do século XX, mais exatamente de 1904, estabelecendo uma discussão que alcançou a Suprema Corte norte-americana, o caso “Estados Unidos versus McGray”, que discutiu a tributação diferençada da margarina e da manteiga; e no qual a Suprema Corte reconheceu a procedência da tributação mais gravosa da margarina em virtude de razões extrafiscais atinentes à saúde, como lembra BALEEIRO . Foi a partir de então que se construiu, nos Estados Unidos, a duplicidade da visão do tributar com fundamento no “power to tax” – no “poder de tributar”, literalmente, ou, cientificamente, na competência tributária, que consiste na tributação habitual, na tributação que visa tão somente carrear recursos para os cofres públicos – e do tributar com amparo no que os norte-americanos chamam de “police power” – literalmente, no “poder de polícia”, que corresponde a uma tributação regulatória, a uma tributação intervencionista, a uma tributação que visa realizar objetivos não meramente arrecadatórios, mas de caráter social ou econômico. Na primeira hipótese, fala-se de “fiscalidade”, em oposição à segunda, em que se cogita de “extrafiscalidade” .

No Brasil, ponha-se ênfase, de início, no registro de BALEEIRO de que, quando a doutrina ainda nem sequer sonhava com a extrafiscalidade, “...já os governos a praticavam largamente sob a forma de isenções a indústrias novas ou subsídios à exportação...etc”, mencionando que “O dec. Lei 300, de 1938, regulou e consolidou várias dessas isenções da legislação anterior” . Essa a razão pela qual o mesmo jurista declarava, já no alvorecer da segunda metade do século XX: “Acredita-se encerrado o tempo das finanças ‘neutras’, às quais sucedem as finanças ‘ativas’, como alavancas de comando da conjuntura econômica e do desenvolvimento” – um tempo em que, diz mestre SOUTO, uma década e meia depois, chega-se a aludir a um estado “...regulador e tributador”, assinalado pela “agressividade” . Por fim, quase cinco décadas depois, o panorama é bem desenhado por PITTEN VELLOSO: “...hoje em dia não só se admite pacificamente a extrafiscalidade, mas também se reconhece que ela constitui uma realidade irreversível nos Estados Sociais de Direito” (grifamos), inclusive no Brasil .

Mas se, de um lado, há que reconhecer que tal presença é permanente e definitiva em nossa realidade jurídica; é inevitável, de outro, admitir e confessar os problemas e embaraços que dela decorrem. Dos quais, o mais importante e delicado deles, na assertiva clássica de SÁINZ DE BUJANDA, é exatamente o da sua legitimidade constitucional . Esses fins alheios ao quotidiano da fiscalidade devem encontrar nítida e clara consagração constitucional. Ora referidos como interesses públicos ou sociais ; ora mencionados como objetivos, finalidades, diretrizes ou princípios ; mas sempre vistos como contemplados, amparados ou protegidos na Lei das Leis. De todos, a modo de síntese, a conclusão de MARTÍNEZ DE PISÓN, o professor da Universidade Autônoma de Madri: “...existe un amplio consenso doctrinal y jurisprudencial sobre la legitimidad de los fines extrafiscales del tributo cuando dichos fines estén amparados por la Constitución...” ; caso contrário resta violada a Capacidade Contributiva e, por via de consequência, a Igualdade.

Aliás, é justamente nesse campo da extrafiscalidade, mais do que em qualquer outro, que reside o maior risco das investidas contra a Capacidade Contributiva e a Igualdade Tributária. Entre nós, a advertência foi de SOUTO MAIOR ; mas, internacionalmente, a precedência coube a SÁINZ DE BUJANDA, que identificou, aqui, um “...espinoso problema...” ; e mais do que isso, um “...terrible problema...” ; que o conduziu a famosas e multicitadas conclusões: “Desde el punto de vista jurídico positivo, la equitativa distribución de la carga fiscal no puede sacrificarse para el logro de otros fines, por muy elevados y atrayentes que éstos sean...” ; “El progreso no es legítimo ni eficaz, si se sacrifica ‘el valor perdurable de la justicia’...” Pelas quais, seus pronunciamentos foram classificados como “categóricos” (PITTEN VELLOSO ), e ele mesmo como o “expoente máximo” da tese que sustenta a ilegitimidade das providências extrafiscais (SEABRA DE GODOI ).

Tal corrente doutrinária, francamente avessa à extrafiscalidade, embora quase sempre conectada a SÁINZ DE BUJANDA, encontrou defesa em outras vozes importantes do século XX, como as de CARLOS M. GIULIANI FONROUGE, da Argentina, LUIGI RASTELLO, da Itália, e ERNESTO FLORES ZAVALA, do México, entre outros . Todavia, em face do amplo acatamento internacional da extrafiscalidade, trata-se de concepção bem avaliada, hoje, por PITTEN VELLOSO, por exemplo, como radical e anacrônica, cujo agasalho incondicionado só teria lugar no clássico Estado Liberal, encontrando-se, pois, tal como este, superada .

Em completa oposição, a tese de FRANCESCO MOSCHETTI, advogando a possibilidade de conjugação dessas noções. Como só se pode cogitar de capacidade contributiva quando a econômica for qualificada pelo dever de solidariedade social, então, na capacidade contributiva, “...não se pode considerar a riqueza do indivíduo singular separadamente das exigências coletivas”, assim como acontece quando se perseguem também os objetivos extrafiscais constitucionalmente estabelecidos, motivo pelo qual “O problema da legitimidade dos fins extrafiscais do imposto queda resolvido, a nosso juízo, de modo simples e linear...” Conquanto seguida por muitos, inclusive da doutrina autóctone ; parece-nos uma explicação excessivamente simplificadora e adrede destinada a superar as contradições ; se não “...un juego dialéctico para eludir el control de la capacidad contributiva, más que otra cosa”, como sugere, com algo de excesso, GARCÍA NOVOA ; e que já tivemos a oportunidade de classificar como “...uma tentativa talvez heróica...”, mas de muito difícil, e mesmo impossível sustentação, sob pena de notório vilipêndio à Capacidade Contributiva .

Pode-se cogitar, entretanto, de uma aplicação mais branda desse princípio, mesmo no âmbito da extrafiscalidade. Há muito, BALEEIRO chamava a atenção, no caso, para a disposição da Suprema Corte norte-americana de tolerar e mitigar o “due process of law” ; numa tendência talvez semelhante à do Tribunal Constitucional Espanhol e de suas decisões dos anos oitenta do século passado, para as quais, ainda que no reino da extrafiscalidade, “...lo que realmente se exige es que los tribunales no ‘desconozcan’ la capacidad económica, pudiendo no estar inspirados exclusivamente en la misma” . Quiçá similar a doutrina de KLAUS TIPKE e de JOACHIM LANG, ao afirmarem que a capacidade contributiva pode ser restrita pelas normas de finalidade social, mas não eliminada ; ou a de FERREIRO LAPATZA e de MARTÍNEZ DE PISÓN, aludindo ao consenso quanto à extrafiscalidade, quando respeitadas as exigências “básicas” ou “mínimas” do princípio . A chave estaria, aqui, no diagnóstico dessas exigências básicas ou mínimas. Para alguns, elas estariam consubstanciadas na reverência ao Mínimo Existencial, o limite inferior da capacidade contributiva . Outros inclinam-se a identificá-las na obediência à Vedação do Efeito de Confisco, o limite superior desse princípio . Já nos pronunciamos pelo atendimento simultâneo e cumulativo de ambos os limites, que, em boa companhia, seguimos entendendo adequado .
Admita-se, porém, que, nesse recinto extrafiscal, a capacidade contributiva não vai além da exigência relativa aos seus limites de piso e de teto, sendo, no demais, afastada, como critério da igualdade . Esta, no entanto, a Igualdade em si, continua reinando soberana, porque mais ampla do que a Capacidade Contributiva . Competente, como de hábito, a explicação de HUMBERTO ÁVILA: “...capacidade contributiva... constitui a concretização setorial específica do princípio da igualdade, no caso das normas tributárias primariamente criadoras de encargos. O âmbito de aplicação do princípio da igualdade é, todavia, mais extenso... porque... tanto se aplica para aquelas normas que têm por finalidade primária a criação de encargos (subtração de valores) quanto para aquelas que têm por finalidade primária a alteração de comportamentos (afetação dos direitos de liberdade)” . Estas últimas é que dizem respeito à extrafiscalidade, perímetro do qual é excluída a Igualdade na sua vertente Igualdade-Capacidade Contributiva, mas não a Igualdade que recorre a outros critérios de estabelecimento das similitudes e distinções. MISABEL DERZI trata, aqui, de derrogações da capacidade contributiva que não ofendem à igualdade, desde que fundadas, por exemplo, no mérito econômico, na aptidão para concretizar planos econômicos governamentais . Eis porque CASALTA NABAIS cogita, no caso, de um afastamento parcial da Igualdade, uma vez que restrito à vertente da Capacidade Contributiva . E encontramo-nos, portanto, diante de uma terceira corrente doutrinária, que acata uma aplicação atenuada da capacidade contributiva, na seara da extrafiscalidade, no que concerne apenas aos seus limites ; e sustenta uma decidida aplicação da igualdade que busca arrimo em critérios outros, que não a capacidade contributiva .

Atente-se, porém, para o fato de que, se, no círculo da extrafiscalidade, afasta-se a capacidade contributiva, exceto pela manutenção do exame dos seus limites, então, a própria igualdade é atingida, mesmo que parcialmente. E razão seja dada a ANDREI PITTEN VELLOSO: em face de qualquer conflito de bens jurídicos que envolva o Princípio da Igualdade é forçoso reconhecer a procedência da tutela do controle da proporcionalidade, como ocorre com qualquer outro direito fundamental, por exigência do próprio Estado de Direito . Não há que se contentar, aqui, com a simples análise da legitimidade constitucional dos fins e dos meios das providências extrafiscais – necessária, mas insuficiente – porque redundaria, inevitavelmente, no manso, pacífico e inocente acolhimento de toda e qualquer desigualdade decorrente da tributação extrafiscal, apequenando, irremediavelmente, o Princípio da Igualdade, por natureza, grande como talvez nenhum outro .

Estabelecida a legitimidade constitucional dos fins e dos meios extrafiscais, de que já falamos, à guisa de uma precondição, aí, então, cabe o recurso à proporcionalidade . Não no sentido da integração, material ou de conteúdo, da proporcionalidade à igualdade – tendência adotada, a partir dos anos oitenta do século XX, pelo Tribunal Constitucional Alemão, e batizada como “nova fórmula” – mas na acepção de controle das desigualdades. Trata-se do tríplice exame da proporcionalidade: verificar se as medidas escolhidas são adequadas à finalidade extrafiscal perseguida (adequação, na relação “meio x fim”); se, diante da existência de medidas alternativas, as adotadas são as menos restritivas e prejudiciais à igualdade (necessidade, na relação “meio x meio”); e se as vantagens derivadas da finalidade extrafiscal almejada são proporcionais às desvantagens oriundas das desigualdades estabelecidas (proporcionalidade em sentido estrito, na relação “vantagens x desvantagens”) . É larga e respeitável a doutrina que trilha esse caminho ; mesmo porque, como observa SCHOUERI, é exatamente o Princípio da Proporcionalidade que permite compatibilizar as normas extrafiscais com o Princípio da Igualdade .

Na jurisprudência comparada, o Tribunal Constitucional Espanhol, embora tenha acenado nessa direção, acaba por não realizar esse tipo de controle; lacuna que, no caso do Tribunal Constitucional Alemão, é parcial, desde que o faz, em determinadas decisões, deixando de fazê-lo em outras .

Já o nosso Supremo Tribunal Federal nem sequer distingue, praticamente, entre as desigualdades provenientes das normas tributárias do campo da fiscalidade, subordinadas à capacidade contributiva, daquelas advindas das normas tributárias da esfera da extrafiscalidade, sujeitas à proporcionalidade. Este último controle, o da proporcionalidade – que, para CELSO DE BARROS CORREIA NETO, constitui “...a principal alternativa...”, e mesmo um “...caminho indispensável...” para a fiscalização das normas extrafiscais – não tem sido feito pelo STF, e quando acontece, é de modo muito parcial e precário (MARTHA LEÃO), por isso é bastante tímido (RICARDO LODI RIBEIRO) e fica “...muito aquém do que se pode esperar de uma Corte Constitucional” (GILSON BOMFIM) . Em suma, nosso mais elevado tribunal revela-se quase completamente omisso, no que tange a esse controle; e curiosamente, porque o realiza em diversos casos de controle da constitucionalidade de leis, mas, neste, contenta-se em alegar que as providências do legislativo ou do executivo são tomadas no exercício das respectivas discricionariedades, e, assim, não são passíveis da sua verificação .

Perante essa inquestionável carência de fiscalização da extrafiscalidade, MARTHA LEÃO observa: “Confunde-se, assim, ‘autorização para instituição’ com ‘autorização para a instituição de qualquer forma’...”; acrescentando que tais normas, “...antes de serem extrafiscais, são tributárias...” . Diante dessa evidente insuficiência de controle, HUMBERTO ÁVILA, com toda procedência, censura a tese simplista da insindicabilidade judicial, tachando-a como “...uma monstruosidade que viola a função de guardião da Constituição atribuída ao Supremo Tribunal Federal, a plena realização do princípio democrático e dos direitos fundamentais bem como a concretização do princípio da universalidade da jurisdição”; concluindo que, lamentavelmente, tal omissão judicial torna “...o princípio da igualdade deficitário...”, entre nós .

5. Publicidade e Exposição de Motivos
Antes do exame dos instrumentos extrafiscais que nos interessam, cumpre, ainda, considerar, às rápidas, a necessária publicidade dos atos normativos e da sua justificação. Se ninguém se escusa do cumprimento das leis pela alegação do seu desconhecimento – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, Decreto-Lei n° 4.657/1942, artigo 3º, com a ementa alterada pela Lei nº 12.376/2010 – cabe ao estado, por evidente, o dever da divulgação dos seus textos e motivações. Trata-se do Princípio da Publicidade, expressa e reiteradamente positivado na vigente Lei Magna – artigos 5º, XXXIII, XXXIV, LX e LXXII; 37, caput e § 3º, II; e 93, IX – tanto que “Jamais a história constitucional brasileira...” lhe “...outorgou tamanha magnitude...” (EGON BOCKMANN MOREIRA ).

De um ângulo mais largo e não exclusivamente jurídico, argumenta, com correção, FABIANA DE MENEZES SOARES, que não basta o mero cumprimento formal desse dever do estado, mediante o procedimento secular de publicação em jornais oficiais de tiragem e circulação limitadas; e nem mesmo a divulgação digital, em virtude do alto grau da sua exclusão ; mas, isso sim, o caminho árduo e moroso da adoção de políticas públicas efetivas – eliminação do analfabetismo e universalização do acesso às tecnologias de informação, inclusive com o aparelhamento técnico das escolas públicas – que, a médio ou longo prazo, propiciarão condições reais de conhecimento, para afastar ou minimizar o véu do desconhecimento .

Mas, de um ângulo jurídico e mais estreito, resgatemos a tradição medieval de incluir, entre os elementos da lei, uma “...’arenga’ ou motivação...” (KILDARE GONÇALVES CARVALHO ). Nessa linha, a Lei Complementar nº 95/1998, ao dispor sobre elaboração, redação, alteração e consolidação das leis, incluindo, na sua parte preliminar, a ementa (art. 3º, I), para explicitar o objeto da lei (art. 5º); e na parte normativa, a determinação de que o seu primeiro artigo indique, além do objeto da lei, o seu âmbito de aplicação (arts. 3º, II e 7º, caput). No perímetro do Executivo, o Decreto nº 9.191/2017, que regulamentou essa lei complementar, estabeleceu que as propostas de atos normativos sejam encaminhadas com “...exposição de motivos do titular do órgão proponente” (art. 26); exposição essa composta pela síntese do problema, pela justificativa do ato e pela identificação dos atingidos (art. 27); e acompanhada de um parecer jurídico, com dispositivos constitucionais e legais de fundamentação, consequências jurídicas, controvérsias jurídicas e conclusões quanto à constitucionalidade e à legalidade (arts. 30 e 31); e de um parecer de mérito, com análise do problema, objetivos, identificação dos atingidos, estratégia e prazo (arts. 30 e 32), além do impacto orçamentário-financeiro, especialmente em caso de incentivos tributários (Lei Complementar nº 101/2000, Lei de Responsabilidade Fiscal, art. 14) . Já na esfera do Legislativo, o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, Resolução nº 17/1989, artigo 103, dispõe que “A proposição poderá ser fundamentada por escrito ou verbalmente...”; e o Regimento Interno do Senado Federal, Resolução nº 93/1970, artigo 238, fixa que “As proposições... devem ser acompanhadas de justificação oral ou escrita...”

Em idêntico rumo, as inclinações da boa doutrina: “Os projetos de lei devem ser motivados através de uma justificativa em que o titular da iniciativa demonstre a necessidade da regulamentação pretendida” (JOSÉ AFONSO DA SILVA ); “...a ‘exposição de motivos’ constitui a cláusula em que se expõem as ideias principais que motivaram a elaboração da lei, bem como suas características essenciais... é um documento elaborado normalmente por juristas...” (KILDARE G. CARVALHO ); SIDNEY GUERRA e GUSTAVO MERÇON explicam que as cláusulas justificativas se apresentam como “considerandos” ou uma “exposição de motivos”, redigida por especialistas, com as modificações efetuadas, a fonte embasadora, a linha ideológica, os posicionamentos divergentes e as referências ao Direito Comparado ; com o adendo de HILDA DE SOUZA, de que a justificativa atende ao Princípio da Motivação .

6. Incentivos Tributários

Restringimos, a partir deste ponto, nosso ângulo de preocupações extrafiscais, concentrando a atenção nos incentivos tributários, pelo pronunciado relevo dessa específica arena da extrafiscalidade. Com efeito, como sublinha CASALTA NABAIS, “...é no domínio dos chamados benefícios fiscais que a extrafiscalidade se revela em termos mais significativos e freqüentes...” (sic). Trata-se, hoje, da “...manifestação dominante da extrafiscalidade...”

Abrimos, contudo, parênteses, aproveitando a terminologia do ilustre jurista lusitano – “benefícios fiscais” – ou a da expressão ainda mais comum, entre nós – “incentivos fiscais” – para registrar nossas reservas quanto a essa nomenclatura, de cunho etimológico, como já registramos alhures .

Fiscal, do latim “fiscalis”, significa hoje “relativo à fazenda pública”, como ensina ANTONIO GERALDO DA CUNHA . Mas convém que consideremos, brevemente, a evolução etimológica da palavra. Numa primeira etapa do império romano, a palavra “fisco” (“fiscum”) foi utilizada para referir o cesto de vime ou junco empregado pelos coletores para guardar o dinheiro arrecadado; numa etapa posterior, passou a indicar a caixa destinada a permanecer nas mãos do imperador, para conservar o “tesouro do Príncipe”, com os seus recursos privados, que não se confundia com a palavra “erário” (“aerarium”), caixa depositada nas mãos do senado romano, para resguardar o “tesouro público”, abastecido por receitas públicas; na terceira etapa evolutiva, “fisco” ganhou mais relevância do que “erário”, passando a acolher maior vulto de recursos; e, numa etapa derradeira, já na fase republicana, ambos os vocábulos – tanto “fisco” como “erário” – passaram a apontar para o mesmo e idêntico significado de tesouro público ou fazenda pública . Ora, ao tesouro chegam todas as receitas (obtenção de recursos), que serão administradas enquanto ali permanecerem (gestão de recursos), e depois deixarão o caixa, sendo despendidas na prestação, por exemplo, de serviços públicos, de sorte a atender às necessidades públicas (gasto de recursos). É claro e manifesto que o adjetivo “fiscal”, abarcando as receitas, a gestão e as despesas – todos os campos da atividade financeira do estado – acaba por identificar-se muito mais com “financeiro” do que com “tributário”. Por isso, e nada obstante a observação de ALIOMAR BALEEIRO, que utiliza “tributário” e “fiscal” como sinônimos, “...a despeito de qualquer contra-indicação etimológica” (sic), entendemos adequado substituir as expressões mencionadas por “incentivo tributário” .

7. Inconvenientes da Extrafiscalidade

Se, ao prepararmos o caminho para a investigação de alguns específicos incentivos tributários, ou no seu próprio exame, fomos constrangidos a refletir, trabalhar e argumentar com algumas complexidades, isso é corolário do labirinto jurídico da extrafiscalidade, no qual moram e residem esses incentivos, cujo pendor para tornar intrincado o Direito Tributário é de colossais proporções, como o confirma CASALTA NABAIS: “os benefícios fiscais constituem a principal causa da extrema complexização do actual direito fiscal...” (sic) !

E fosse apenas uma questão de complicação jurídica, não seria assim tão grave. Mas é mais ! Trata-se de uma ameaça de risco, porque se volta contra a Igualdade e a Capacidade Contributiva – “...a extrafiscalidade... representa uma das principais causas das desigualdades impositivas” (PITTEN VELLOSO ). Tanto a extrafiscalidade atemoriza a Igualdade que poderíamos até nos acercar, com DIEGO BOMFIM, da “...sensação equivocada de que o princípio da igualdade é mera peça ornamental do ordenamento jurídico” . Tanto a extrafiscalidade amedronta a Capacidade Contributiva que, já a tendo classificado como a estrela polar da tributação, poderíamos até nos aproximar, com ERNESTO LEJEUNE VALCÁRCEL, da atitude de lhe “...negar... o papel estelar que até o momento havia tido” . Ora, como a Igualdade é o princípio dos princípios e como a Capacidade Contributiva é o princípio dos princípios tributários, não se trata de um simples problema de dificuldade jurídica, mas, em verdade, é muito mais ! Trata-se de uma ameaça que intimida, apavora e sobressalta o mundo jurídico-tributário !

E uma ameaça que se avoluma e se agiganta, dado o apelo, por parte do estado, cada vez mais reiterado e frequente, aos incentivos tributários. A ponto de SÁINZ DE BUJANDA, há muito, já haver batizado essa infestação de incentivos como “beatería”, ou, no vernáculo, beatice ou beataria, no sentido de fanatismo, geralmente hipócrita, advertindo contra a crença de que eles sejam “...una panacea para todos los males” .

O grau de susto e amedrontamento que essa ameaça traz pode ser bem avaliado a partir do aviso antigo e sensato de MISABEL DERZI, de que “...não raramente, o ente estatal tributante, ávido de recursos, será tentado a usar a extrafiscalidade como desculpa ou pretexto para estabelecer maior pressão fiscal” ; e de modo muito facilmente compreensível, porque se achará, nesse caso, liberto das amarras jurídicas efetivas da Igualdade e livre do cabresto jurídico eficiente da Capacidade Contributiva. “Extrafiscalidade” soaria, então, na sugestão de GERALDO ATALIBA, como uma “...invocação mágica...” ! “Extrafiscalidade” ressoaria, aí, como uma palavra prestidigitadora, como um vocábulo feiticeiro, como um “abracadabra !” ou um “abre-te sésamo !”, a fazer com que se abrissem, para o legislador, de par em par, as portas sedutoras e temíveis do arbítrio !
E o estado que, benigno e bondoso, concede estímulos a determinadas entidades ou atividades, de um instante para outro, pode revelar-se aquele que, aterrorizante e aterrador, promove discriminações desproporcionais e desiguala injustamente ! E a lei do direito, da capacidade contributiva, da igualdade e da justiça, pode, talvez, converter-se, de inopino, na velha, formidável e medonha lei do mais forte !

8. Da metodologia.

A presente pesquisa será efetuada por meio da revisão bibliográfica, com recurso aos ensinamentos da doutrina pátria e da jurisprudência, e, sobretudo, da análise da legislação do Distrito Federal aplicável aos casos dos chamados “benefícios fiscais”.
Verifica-se que boa parte dos benefícios fiscais/incentivos tributários atualmente em vigor no Distrito Federal podem ser encontrados na sua atual Lei de Diretrizes Orçamentárias (Lei nº 6.934, de 05 de agosto de 2021). Isso porque, tratando-se os referidos benefícios de renúncias à arrecadação pelo próprio Ente Tributante, nada mais natural do que a necessidade de previsões orçamentárias a respeito dessas concessões, acompanhadas de medidas voltadas a compensação de sua receita.

Importante pontuar que a LDO, cuja validade em regra é de 1 ano, estabelece de forma genérica as metas e prioridades para o exercício seguinte, nos termos do art. 165, § 2º, da CF e Art. 4º, seus incisos e parágrafos, da Lei de Responsabilidade Fiscal. Trata-se assim de legislação voltada à concretização do Plano Plurianual, com a previsão das receitas e despesas a serem verificadas no próximo exercício.
Note-se que os §§ 1º e 2º do art. 4º da LRF prescrevem confecção do Anexo das Metas Fiscais, o qual descreverá os objetivos de arrecadação e gastos a serem atingidos para o ano subsequente, a avaliação do cumprimento das metas do ano anterior, a evolução do patrimônio líquido, dentre outras questões relevantes para a manutenção do equilíbrio fiscal. Por sua vez, o inciso V do citado § 2º determina a inclusão no referido Anexo do demonstrativo das estimativas e compensações de renúncias de receitas e da margem de expansão das despesas obrigatórias de caráter continuado.

É justamente em cumprimento aos citados dispositivos que a Lei nº 6.934/2021 do DF, por meio de seu Anexo XI, apresenta extensa planilha com cada uma das hipóteses entendidas como “benefícios fiscais”, distinguindo-as a partir do tributo a que se referem e dos setores, programas ou grupos a serem beneficiados. O mesmo documento indica o fundamento legal dos benefícios e a quantia aproximada da renúncia para os três exercícios seguintes, bem como que as compensações correspondentes estão compreendidas na estimativa da receita do DF, nos termos do art. 14, inciso I, da Lei Complementar nº 101/2000.

Vale ressaltar que a competência tributária peculiar do Distrito Federal, que lhe permite a instituição de tributos estaduais e municipais, contribui também para a existência de grande número de benefícios, abrangendo as seguintes exações: ICMS, ISS, IPVA, IPTU, ITBI, ITCD, TLP e Taxa de Expediente.

Dessa forma, impõe-se para a pesquisa a análise individualizada dos casos elencados nessa LDO, que abrangem anistias, créditos presumidos, isenções, reduções de alíquotas, reduções das bases de cálculo, remissões e hipóteses de não-incidência, com o objetivo de verificar se há suficiente exposição de motivos e o necessário respeito ao princípio da proporcionalidade. As referidas concessões estão espalhadas por diversos diplomas normativos que incluem, por exemplo, Convênios ICMS/CONFAZ e os Decretos neles fundamentados, além de Leis Distritais Ordinárias e Complementares.

Pois bem, antes que se possa examinar com especificidade os “benefícios fiscais” em comento, torna-se necessário conceituar em linhas gerais as suas espécies, a começar pelo instituto da anistia. Conforme as lições de Paulo de Barros CARVALHO, a anistia, prevista pelos arts. 175, II, e 180 a 182, do CTN, implica o perdão em relação ao ato do contribuinte infrator ou à penalidade que lhe foi imposta, possuindo caráter notadamente retroativo - pois somente alcança os fatos ocorridos antes do termo inicial da Lei que a introduz no ordenamento jurídico .

O mesmo autor expõe que a anistia não deve se confundir com a remissão (art. 156, IV, do CTN), uma vez que esta última refere-se exclusivamente à renúncia do Ente Tributante de seu direito de subjetivo de cobrar e receber o valor resultante da prática da infração tributária, mas não implica “esquecimento” quanto a existência do referido ato . Na visão de Luis Eduardo SCHOUERI, por abarcar o crédito tributário em si considerado, a remissão pode alcançar não apenas a penalidade por infrações tributárias, mas também o valor cobrado a título de tributo

No que se refere às isenções, previstas pelos arts. 175, I, e 176 a 179, do CTN, é importante a observação de Paulo de Barros CARVALHO quanto ao fato de que se tratam de normas de estrutura, cujo consequente normativo trata da relação entre normas de conduta, bem como da sua produção, modificação ou exclusão do sistema normativo. Nesse sentido, as normas isentivas operam uma mutilação parcial de um ou mais dos critérios da norma-padrão de incidência tributária, de forma a paralisar a sua eficácia em relação a determinados casos concretos descritos no antecedente da isenção, e não tão somente a redução do tributo a ser cobrado . Essa também é a opinião de Luís Eduardo SCHOERI e Sacha Calmon Navarro COELHO .

Torna-se relevante distinguir as isenções das hipóteses de não incidência, isso porque estas últimas constituem casos que, embora estejam abarcados no espectro da competência tributária outorgada pela Constituição Federal, são “deixados de lado” pelo legislador quando da descrição da hipótese de incidência . Tratam-se, portanto, de situações em que legislação tributária não alcança fatos que hipoteticamente poderiam estar incluídos na hipótese de incidência de determinado tributo. Sacha Calmon Navarro COELHO distingue a não incidência, a imunidade e a isenção da seguinte forma sucinta:

Se, sob o ponto de vista do Direito Positivo, a imunidade e a isenção são declarações expressas do legislador sobre fatos ou aspectos de fatos ou estados de fato, negando-lhes efeitos tributários impositivos, não vemos como, neste plano, compará-las com a chamada “não incidência natural ou pura”. A imunidade e a isenção são, existem, vêm de entes legais positivos. A não incidência natural ou pura como tal inexiste, é um não ser. A imunidade e a isenção são técnicas legislativas .

De outro lado, as reduções de bases de cálculo e alíquotas também não podem ser confundidas com as isenções. Como lembra Paulo de Barros CARVALHO, tratam-se tão somente de alterações parciais na amplitude dos critérios informadores do consequente normativo da norma-padrão de incidência tributária, sem, contudo, resultar no desaparecimento da obrigação correspondente .

Eis, em síntese, nossa proposta de pesquisa.
Equipe:
1 - CLEUCIO SANTOS NUNES - Pesquisador Interno
2 - CRISTIANE ARAUJO DE FARIA - Aluno
3 - GABRIEL LEAL LOPES DA SILVA - Aluno
4 - Guilherme Broto Follador - Pesquisador Externo
5 - José Roberto Vieira - Pesquisador Externo
6 - MAURICIO DALRI TIMM DO VALLE - Pesquisador Interno
7 - ROSALDO TREVISAN - Pesquisador Externo
8 - RUDSON DIÊGO PEREIRA DA SILVA - Aluno
9 - Valterlei Aparecido da Costa - Pesquisador Externo
Orçamento Aprovado:
Material PermanenteR$ 20.400,00
Serviço de TerceirosR$ 52.000,00
Valor TotalR$ 72.400,00
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